Na contramão do mercado, autor vai às ruas buscar seu público e gera novas experiências de vida.

Wendel Bernardes • 11 de abril de 2023

Na contramão do mercado, autor vai às ruas buscar seu público e gera novas experiências de vida

“Todo artista tem de ir aonde o povo está.”, - a frase icônica cantada por Milton Nascimento e composta por Fernando Brandt ainda reverbera em nosso inconsciente. A canção do ano de 1981 evocava um recorte da vida do cantor em que vivera de música de uma forma mais artesanal, orgânica, longe ainda do estrelato e consagração internacional. Talvez nos leve ao sentimento um tanto mambembe ou mesmo hippie de, abraçado a um violão, encontrar os ouvidos nos ‘’bailes da vida’’. De qualquer forma, a missão de Milton, como sabemos, trouxe-lhe grande êxito, porém, não sem esforço.


Esse conceito de arte orgânica e preocupada de ir até o público parece agonizar na contemporaneidade. Os meios múltiplos para expor a arte são agora mais válidos do que atingir aos pequenos públicos, e deles obter in loco, um feedback direcionado, um sorriso, um manear de cabeça, mas também até mesmo uma refuga, uma crítica. De certa forma nos escondemos por detrás de janelas cintilantes das grandes plataformas de vendas online e de exposição como YouTube ou Amazon e condicionamos cultura ao toque de um link. Porém, a essência composta por Brandt e cantada por Milton parece ainda existir.


Maiqueu Ferreira é um jovem escritor de Santa Catarina. Seu debut na literatura, o livro “Estrela guia”, teve seu lançamento nas plataformas de leitura e vendas online no mês de março de 2023. Seu livro é bem avaliado na Amazon e possui críticas muito positivas em plataformas como Instagram, Skoob e Tik Tok. A versão física, pode ser facilmente encontrada com um clique na plataforma de vendas da Editora Baruch, casa editorial que acolheu o autor, mas à despeito de tudo, Maiqueu decidiu fazer um caminho, alternativo, quase inverso, mas que estava em seu coração.


Sua editora, Glaucia Vargas, não escondeu a surpresa quando recebeu uma chamada do autor voluntariando-se para buscar caixas de exemplares de seu livro diretamente na gráfica para oferecê-los nas rodoviárias e ruas da maior metrópole do pais, São Paulo. “Ele me disse; Glaucia, é a minha missão”, - declara a editora pasma com a iniciativa. “é tipo uma missão espiritual mesmo, eu estou espantada!” conclui. Com a experiência de cinco anos de mercado como autora, coach e editora não havia se deparado com tamanho envolvimento. A essência de Maiqueu Ferreira, ainda segundo Glaucia, beira o total despendimento do status glamurizado de um autor. Tanto que usou parte dos recursos autorais para disponibilizar dezenas de livros para doação às pessoas que não podem adquirir em seus encontros diretos com o leitor. Esses encontros geraram situações grandiosas. “Olha que incrível, embarquei num desses ônibus elétricos para vir para o centro. Sentou uma senhora... (ao lado) apresentei o trabalho. Ela simplesmente leu atrás, achou incrível e colocou na bolsa... só depois perguntou quanto.” – disse Maiqueu entusiasmado com a oportunidade de falar de sua literatura enquanto cunha seu próprio público-alvo.


Ainda no centro de São Paulo, os registros fotográficos do acervo pessoal do autor impressionam. O encontro com um rapaz que montou uma barraca de livros improvisada usando uma lona no chão, próximo aos passantes. Ali oferece sucessos da literatura contemporânea de segunda mão, todos frutos de doação, enquanto uma placa simples de papelão dizia: “Estou com fome!! Compre um livro! Ajude um pai a pagar o aluguel. Aceito doações de fraldas e leite.” – a emoção tomou conta do autor que contribuiu com exemplares para que as vendas revertessem em ajuda para aquela família tão jovem. “Penso em explorar todas as capitais brasileiras” – disse-me o autor em breve entrevista. “Até teve uma senhora que ficou com o primeiro livro que ficou impressionada pela maneira de mostrar o trabalho dessa forma.”

O contato com os leitores é fenomenal, porém, as experiências advindas desses encontros são também enriquecedoras. Através de um áudio enviado à Glaucia, o relato emocionado de um rapaz, leitor, que estava angustiado em não saber a decisão a ser tomada após receber a notícia de duas vagas de emprego e que teria de escolher entre ambos. Após conversa com o autor o rapaz diz que “ajudou bastante a abrir a mente para fazer o que Deus quer.” O livro possui exatamente esse cunho, mostrar caminhos positivos com reflexões acerca do correto para o leitor naquele momento. Ouvir de um leitor esse relato é mais do que uma boa notícia de venda para o autor, mas sim perceber que alguém leu e teve sua vida impactada pelo que recebeu na leitura. Em relação ao fato o autor entende que “não existe preço real” em relação a isso. Fica aquela sensação de que se recebe de volta todo o bem que se pratica “eu tenho ganhado cada abraço, que olha...” enfatiza o escritor.


Enquanto conquista clientes e expande sua rede de leitores, Ferreira não deixa de cumprir também um papel social. Abordou um grupo de pessoas em situação de rua. A doação dos exemplares lhes espantou. As páginas do livro que falam sobre a beleza do encontro com a essência do ser humano estavam em boas mãos. A leitura afável e singela tocou quem mais deveria, segundo o autor. “A expansão é isso, ela não tem limites, a missão é expandir.”

O projeto de Maiqueu continua pelas ruas da cidade, vendendo exemplares aos que podem compra-los e doando cópias aos que não podem. A beleza disso é que a essência idealizada e composta por Brandt parece estar mantida. Levar a arte em forma de literatura transformadora está além do prazer de ler um bom livro de ficção, ou de ter uma bela estante decorada, ou, por último, conhecer as indicações de um guru de não ficção famoso. Está na transformação de mente que a literatura pode gerar e o gesto de Maiqueu Ferreira soa basilar, tal qual semente no fomento de uma cultura que precisamos novamente fazer eclodir.



Diante disso, a canção de Milton que já soma ao menos quarenta e dois anos, ganha novo fôlego, nova roupagem na inventividade de alguém que, mesmo sem um violão, ou “a roupa encharcada”, mas com “a alma repleta de chão” recria na literatura contemporânea, orgânica, independente algo que serve de exemplo para nós outros; autores, críticos, jornalistas, etc, às vezes tão preocupados com os números de vendas ou com o sucesso plástico de um título, esquecemos de manter a essência viva e acesa. Viva a música de Brandt e Milton, o livro e a iniciativa de Maiqueu Ferreira, mas sobretudo, viva a ação transformadora que acredita no poder de mudança de paradigmas através da arte.

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